domingo, 9 de janeiro de 2011

As três cartas

 As três cartas 
Silvana Pimentel Batista                     
Alberto insistia tê-las enviado a mim. Mas elas não chegavam.
            Por telefone, meu amigo informava quando as enviara, em qual correio postara as cartas. Tudo em vão. O sumiço das cartas me angustiava porque eram do Alberto.
            Quero falar sobre a primeira carta. Não, prefiro lembrar do meu amigo.
Ele foi meu colega no segundo e no terceiro ano do clássico. Sabia todos os nomes de atores, atrizes e diretores, tudo sobre literatura e era negro. Sonhava em ser um diretor de cinema – dizia que eu seria a atriz principal. Sonhávamos juntos nos intervalos da escola.
Eu queria receber a carta. Talvez falasse sobre seus planos.
            A segunda carta também não chegou.
            Nem a terceira.
Mas havia o meu pai, que, às vezes, voava para atender à porta – em especial, quando o carteiro passava pela rua. Depois de receber a correspondência, sorria um sorriso de cumplicidade consigo mesmo e se trancava no escritório. Saía de lá, como quem fez algo errado. Quem era meu pai? E qual era seu interesse nas cartas endereçadas a uma das filhas? Por que ele nunca interceptou aquelas que o namorado da minha irmã mandava e que, com certeza, falavam de amor? O futuro cunhado era louro.
            Até que um dia, meu pai quase me pediu desculpas com o olhar. O olhar é um prolongamento do tato – explicou Freud.
            Foi aí que desconfiei. Peguei emprestadas, sem que ele soubesse, as chaves de seu escritório e penetrei lá.
            Pela janela de vidro entrava a claridade. A mesa grande, com quatro gavetas de cada lado, e as estantes nas paredes. Diplomas emoldurados quebravam a monotonia do lugar. Tudo permanecia inalterado. Os livros comportavam-se nas estantes de madeira.  Fiz o reconhecimento do terreno. Já havia entrado naquele mundo, que cheirava a pó, centenas de vezes, sempre acompanhada por ele.
Não tinha certeza se as encontraria, nem se ele fora o interceptador. Afinal, tanta coisa desaparecia por lá...
Sumiam doces da cristaleira e ninguém confessava o pecado. Sim, aquilo era coisa pecaminosa. Tinha vidros e espelhos para tudo o que é lado. Pareciam aumentar a quantidade dos doces guardados e a vontade da gente ao ver o móvel exibindo aqueles brigadeiros todos. Éramos capazes de passar uma tarde inteira, ao redor do móvel, no simples ato de cultivar o desejo e de controlar sua satisfação – não podíamos comê-los todos sem levantar suspeitas.
Não eram só cartas ou doces que desapareciam. Houve um tempo em que a família possuía quatro canários. Primeiro, desapareceu um, sem que ninguém tivesse idéia do que lhe acontecera. Será que voou? Foi roubado? Fora abduzido por nave extraterrestre? Dias depois, mais um sumiu. Meu pai jurou que descobriria a incógnita. Colocou cadeado na gaiola. Mesmo assim, uma semana mais tarde, o terceiro canário se evaporou. O mistério se acabou quando, numa madrugada, ouvimos um bater de asas, desesperado. Meu pai acendeu todas as luzes; descemos. Eu desci com um tamanco na mão. Foi tarde. Uma ratazana enorme escalara a gaiola e devorava o quarto canário, assim como fizera, às ocultas, com os outros três. Imagino o sofrimento daqueles pássaros que saberiam se defender bem, voando para longe do predador, mas que, enjaulados, morreram sendo comidos aos pedaços; não foram roubados. Minhas cartas, sim. E eu estava lá, no escritório, como um detetive para reavê-las.
Explorei as gavetas, com cuidado. Em uma, encontrei toda a correspondência. Lá estavam também as cartas. As três cartas do Alberto.
Peguei-as e saí do escritório. Recoloquei as chaves no lugar exato de onde as surrupiara e tranquei-me no meu quarto. Nei Matogrosso cantava no rádio de pilhas: “O que a gente faz é por debaixo dos panos, pra ninguém saber, é por debaixo dos panos...”
E por que ele nunca as entregou para mim?
Não me preocupei de recolocá-las no escritório. Se permaneceram meses nas gavetas fora de forma indevida. Será que percebeu o desaparecimento das cartas? Onde encontraria moral para brigar comigo por ter me apossado de cartas que me pertenciam? Lacan me interrogaria se as cartas eram do Alberto ou minhas, já que foram escritas pelo amigo, mas que eu era a destinatária. À pergunta, responderia, que, certamente, não pertenciam ao meu pai.
Li as cartas com alegria. Saboreei as palavras, bebi o sumo.
            Quase trinta anos se passaram e agora, por mais que tente me lembrar, não me recordo do conteúdo delas. 

2 comentários:

  1. Olá, querida Silvana!

    Adorei os seus textos, sempre que puder estarei aqui lendo-os e comentando-os. Parabéns!

    Um enorme 4!! Beijos!!

    Hugo valim

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  2. Oi Hugo!!!

    Obrigada! Que simpático.
    Tem ido no DL?

    Forte abraco da Silvana

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